terça-feira, 30 de junho de 2015

Regulamentação reabre discussão sobre conceito de trabalho escravo

O ano de 2015 promete ser decisivo na discussão e criação de um novo marco legal para a eliminação do trabalho escravo no Brasil. Espera-se a regulamentação da Proposta de Emenda Constitucional 81, que prevê o confisco da propriedade flagrada na prática de condições degradantes de trabalho.

No bojo dessa discussão, diferentes grupos de interesse se enfrentam e procuram dar à questão o viés que melhor atende a seus interesses. A bancada ruralista, por exemplo, quer suprimir do conceito atual de trabalho escravo, usado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, dois critérios que o caracterizam: a jornada exaustiva e o trabalho degradante. No entender dos parlamentares, a submissão ao trabalho forçado e a restrição de locomoção do empregado seriam suficientes para caracterizar a prática abusiva. 

Por mais que o Brasil tenha uma legislação trabalhista sólida e adotada em grande parte das relações de trabalho, por mais que tenha avançado nas melhorias das condições no campo, ainda convive com a ausência de condições decentes de trabalho em uma quantidade imensa de empreendimentos agropecuários. De acordo com estudos de organizações não governamentais, como a Pastoral da Terra, são esses, carvão e pecuária, os dois segmentos campeões na prática do trabalho escravo no Brasil.

O Imaflora vê-se frequentemente diante dessa questão, seja na avaliação para as certificações florestais e agrícolas, seja nas discussões no âmbito de grupos de trabalho, como o do Carvão Sustentável, além de projetos que envolvem, sobretudo a pecuária. A organização não compactua com o trabalho degradante e por meio de seus programas e projetos, defende e promove condições de trabalho decentes, com garantias legais, segurança e saúde do trabalhador, e em condições de liberdade.

Por isso, essa Nota Técnica foi elaborada com o objetivo identificar o conceito e a legislação existentes sobre Trabalho Escravo e fornecer orientações para a sua aplicação nas diferentes frentes de trabalho realizadas pelo Imaflora.

O que diz a legislação

Existem duas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que tratam a questão do trabalho forçado.

A Convenção 29 dispõe sobre a eliminação do exercício forçado ou obrigatório em todas as suas formas, mas admite exceções, tais como o serviço militar, o penitenciário, adequadamente supervisionado e o obrigatório em situações de emergência, como guerras, incêndios, terremotos. Em seu Artigo 2º, no ítem 1, esclarece que   a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.
A Convenção 105, proíbe o uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou de educação política; como castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas; a mobilização de mão-de-obra; como medida disciplinar no trabalho, punição por participação em greves, ou como medida de discriminação.

No âmbito da legislação brasileira, a Constituição Federal diz que o valor social do trabalho é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, IV da Constituição Federal), e que a ordem econômica funda-se na valorização do trabalho humano, tendo como princípios a busca do pleno emprego e a função social da propriedade (artigo 170, III e VIII e artigo 186 da Constituição Federal). A primazia do trabalho está na base da ordem social (artigo 193 da Constituição Federal). O inciso III do artigo 5º da Constituição de 1988, dispõe que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante."
                       
O artigo 149 do Código Penal, é o instrumento legal que define a redução à condição de trabalho análogo ao de escravo e diz textualmente como se caracteriza: “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, com pena de reclusão de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência”.

Em 2011 foi criada a Instrução Normativa Nº. 91, de 05 de outubro de 2011, que dispõe sobre a fiscalização para a erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo. A aplicação da IN considera trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente:

I – A submissão de trabalhador a trabalhos forçados;
II - A submissão de trabalhador jornada exaustiva;
III – A sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho;
IV – A restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho;
V – A vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
VI - A posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

Em 2014 foi aprovada a Proposta de Emenda Constitucional - PEC 57A/1999, mais conhecida como a PEC do Trabalho Escravo. A PEC 57A/1999 altera a redação do artigo 243 da Constituição Federal, que dispõe sobre as condições de expropriação de propriedades. Esta condição era dada anteriormente pela existência de culturais ilegais na propriedade e com a alteração passou a considerar a exploração de trabalho escravo como condição para expropriação de imóvel rural ou urbano. O Art.243 diz que “as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º”.

Em 2004 o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) editou a Portaria Nº 540, de 15 de outubro de 2004 criando o Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo, conhecido como “Lista Suja do Trabalho Escravo”. A Portaria define que a inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao auto de infração lavrado em decorrência de ação fiscal realizada pelo MTE em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo.

Em 2011 o MTE e a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) criaram a Portaria Interministerial  N.º 2, de 12 de maio de 2011 , com  o mesmo teor da anterior, enunciando regras sobre o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, revogando a Portaria MTE nº 540, de 15 de outubro de 2004 e  mantendo as seguintes orientações: a)  fica no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, o Cadastro de Empregadores (pessoas física ou jurídica) que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo; b)  a inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo; c) a lista terá atualização semestral; d) o empregador deve pagar as multas decorrentes das infrações e seu nome sairá da lista 2 anos após ter entrado; e) o MTE faz o monitoramento do empregador, não havendo reincidência, após os 2 anos o nome é retirado da lista.

Em 31 de dezembro de 2014, o Cadastro de Empregadores foi retirado do site do MTE, por força da liminar proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5209) proposta pela Associação Brasileira de Incorporadas Imobiliárias – ABRAINC, cujo objetivo era a não publicação das informações da “Lista Suja”.

Em março de 2015, MTE e a SDH editaram nova Portaria restabelecendo o Cadastro de Empregadores com algumas modificações. Uma delas, a divulgação do nome do empregador somente depois da decisão final relativa ao auto de infração, lavrado em ação fiscal que tenha identificado trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo, assegurados o contraditório e a ampla defesa em todas as fases do procedimento administrativo. Outra alteração diz respeito à periodicidade, não mais a cada 6 meses, mas atualizada constantemente.

A nova Portaria é respaldada pela Lei de Acesso à Informação (LAI -12.527/2012) e por acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção 105 da OIT, a Convenção Sobre a Escravatura de Genebra e a Convenção Americana de Direitos Humanos. No entanto, o MTE e a SDH aguardam decisão do STF reconhecendo a perda do objeto da antiga Portaria, antes de aplica-la. Petição nesse sentido foi encaminhada ao Tribunal pela Advocacia Geral da União.

 A última versão da “Lista suja do trabalho escravo”, editada em dezembro de 2014, não está publicada, em cumprimento à liminar, mas é oficial e o MTE pode dar acesso ao documento desde que solicitado. O Pacto de Erradicação do Trabalho Escravo adotou como orientação que os que quiserem acesso à “Lista Suja”, baseado na Lei de Acesso à Informação, solicitem uma cópia ao MTE.

A ONG Repórter Brasil, baseada na Lei de Acesso à Informação, solicitou a lista que pode ser consultada no link http://reporterbrasil.org.br/documentos/lista_06_03_2015.pdf.

O andamento da PEC 81

Ao longo de 2015, a Emenda Constitucional 81 estará em discussão no Congresso Nacional. Conforme exposição acima, a proposta de mudança no conceito de trabalho escravo entra em conflito com o Artigo 149 do Código Penal e com os itens II e III da Instrução Normativa Nº. 91.

A proposta já foi discutida e aceita pelo Congresso Nacional e aprovada por uma Comissão Mista de Consolidação das Leis, no entanto, como recebeu um número muito grande de emendas ainda tramita na Casa.   

A caracterização do trabalho escravo no Brasil é um avanço e está de acordo com as referências da Organização Internacional do Trabalho sobre o tema.  A alteração de seu conceito e aplicação representa um retrocesso contra o qual a sociedade deve lutar.

Recomendações aos auditores, coordenadores e demais parceiros do Imaflora:

1. Solicitar através de ofício ao MTE a lista ou cadastro dos empreendimentos que hoje fazem parte;

2. Identificar se existem empreendimentos certificados, clientes, fornecedores de clientes e de madeira controlada na lista suja do trabalho do MTE.

3. A lista suja obtida em 06/03/2015 pela ONG Repórter Brasil pode ser baixada no site:

4. A identificação de uma ou mais condições de trabalho em condições degradantes, conforme os 6 itens definidos pela Instrução Normativa será considerado trabalho degradante e deverá ser tratado como Não-conformidade Maior segundo os critérios e indicadores do FSC e podendo ser enquadrado em critério crítico (5.10) da RAS a depender de uma análise e do conjunto das irregularidades encontradas. 

Heidi Buzato é socióloga, formada pela Unicamp, com mestrado na área de recursos florestais pela ESALQ/USP.  Está cursando doutorado em gestão e planejamento territorial na Universidade Federal do ABC. No Imaflora é a responsável técnica pela área social.




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