sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Áreas Protegidas do Brasil – Patrimônio ameaçado


Cada lâmpada acesa no Brasil tem uma contribuição das Unidades de Conservação (UCs), ainda que a maioria delas esteja localizada na Amazônia. O estudo "Quanto vale o verde?" (1) sobre a importância econômica dessas áreas protegidas estima que dependem das UCs mais de quatro a cada 10 megawatts de energia gerada em usinas hidrelétricas, que respondem por 65% da eletricidade produzida no país (2). Além disso, aproximadamente um a cada quatro litros de água consumidos no Brasil também dependem das UCs, na forma de proteção de mananciais.

Os benefícios proporcionados por áreas de proteção extrapolam os limites do território brasileiro. O mesmo estudo estima que as Unidades de Conservação estoquem uma quantidade de carbono equivalente a 4,6 vezes o total das emissões brasileiras em 2016, contribuindo para conter os efeitos das mudanças climáticas. Em resumo, cada US$ 1 investido nas UCs pode gerar US$ 40 de retorno para a sociedade, sem contar os serviços ecossistêmicos.

A visitação em áreas protegidas continua tendo grande destaque como elemento de dinamização econômica. Cerca de 17 milhões de visitantes foram registrados em 2016, com impacto sobre a economia estimado até 6 bilhões anuais, correspondendo a uma geração de 133 mil ocupações de trabalho. A presença de UCs responde ainda por 44% do valor total do ICMS ecológico dos municípios de treze estados brasileiros. Esse valor foi estimado em R$ 776 milhões no ano de 2015.

Outro aspecto que merece destaque é a importância das áreas protegidas para a saúde humana. Em um país com taxas de urbanização altíssimas como o Brasil, os parques urbanos e naturais representam, em muitos contextos, os últimos espaços onde a população pode desfrutar de um encontro e de reconexão com a natureza. Estudos recentes têm demonstrado que estar na natureza é essencial para a saúde e para o bem-estar humano, com impactos positivos na redução do estresse e da depressão, recuperação de doenças, promoção da interação social e estilos de vida mais saudáveis.

As unidades de conservação no país somam 1,6 milhão de quilômetros quadrados no continente e mais 963 mil quilômetros quadrados no mar (3). Essa extensão equivale a 18% da área continental e 26% da área marinha, sob vários status de proteção. Cabe ressaltar que apenas 6% da área terrestre do Brasil encontra-se em unidades de proteção integral, que não permitem outras atividades econômicas para além do turismo. Dos restantes 12% que estão no grupo de uso sustentável (que permitem outras atividades econômicas), 5,4% estão em APAs (áreas com pouquíssimas restrições ao uso da terra, inclusive com cidades e fazendas no seu interior) e as demais incluem áreas que permitem a produção madeireira sustentável e extrativismo de produtos como a castanha, açaí e borracha.

Essas atividades podem gerar significativa atividade econômica para o país e constitui importante meio de geração de trabalho e renda para as populações locais e tradicionais. Em 2016, a contribuição econômica da produção de peixe, camarão e caranguejo oriunda de UCs foi de R$ 29,2 milhões, com potencial de alcançar R$ 167 milhões anuais, se investimentos no fortalecimento das cadeias produtivas e no manejo dessas áreas forem feitos.

A maior parte das Unidades de Conservação brasileiras encontra-se na Amazônia. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação registra 28,1% do bioma Amazônia protegido. O percentual de proteção é menor nos demais biomas: 9,5% da Mata Atlântica, 8,8% da Caatinga, 8,3% do Cerrado, 4,55% do Pantanal e 2,86% do Pampa.

Além disso, existem no Brasil 723 terras indígenas, que ocupam quase 14% do território brasileiro e protegem áreas de inestimável riqueza natural, sobretudo na Amazônia, onde 25% do território está sob posse e gestão indígenas. Esses territórios cumprem um papel importantíssimo na proteção da floresta, e funcionam como uma barreira para evitar os avanços do desmatamento.

Além do dispositivo constitucional, a criação, reconhecimento e manutenção de áreas protegidas atendem a compromissos internacionais no âmbito das convenções das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica e do Clima, para deter a perda de biodiversidade no planeta e conter os efeitos do aquecimento global, além dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

Um patrimônio de todos os brasileiros, construído em décadas – com benefícios tão tangíveis como a oferta de energia e água e com papel relevante nas condições de vida na Terra – nunca esteve tão ameaçado como agora.

Uma análise das iniciativas, decisões e declarações públicas durante os primeiros meses do atual governo apontam para a fragilização em curso das áreas protegidas e das autarquias que trabalham para sua implementação no país.

Em maio deste ano, o Ministério do Meio Ambiente anunciou a criação de um "grupo de trabalho" para a revisão geral dos limites e categorias das 334 áreas de proteção federais, em todo o país, feita sem justificativa técnica (8). Desde então, 67 alterações em UCs foram propostas (9). Atualmente, dentre as principais ameaças, estão a proposta de reabertura da Estrada do Colono (no Parque Nacional do Iguaçu), a redução do PN da Serra da Bodoquena e do status de proteção do PN Campos Gerais, da Estação Ecológica de Tamoios, PN Lagoa do Peixe, dentre outros.

Sob a atual gestão, também têm sido registradas taxas crescentes e alarmantes de desmatamentos e de queimadas no país, especialmente em áreas protegidas da Amazônia. Os alertas de desmatamento dentro dos limites de UCs na Amazônia entre janeiro e setembro saltaram de 441 Km², em 2018, para 953 Km² neste ano - um aumento de mais de 110% (com base em dados do DETER/INPE) nas perdas florestais em áreas dedicadas à conservação da vida selvagem, de paisagens naturais e de serviços ecossistêmicos. Menos de 2% da superfície das Terras Indígenas amazônicas foi desmatada até hoje, mas essa figura vem mudando rapidamente: o desmatamento entre janeiro e setembro de 2019 é mais de 10 vezes superior ao do mesmo período de 2017 e cerca de 5% de todo o desmatamento na Amazônia nesse ano ocorreu dentro de territórios indígenas, segundo dados do INPE.

Tais dados evidenciam como o desmonte da área ambiental também está atrelado ao enfraquecimento da fiscalização ambiental, com reflexos diretos na redução de autos de infração e de multas aplicadas por toda sorte de crimes ambientais, sobretudo em áreas protegidas.

Todavia, a pressão do governo à área ambiental não se dá somente sobre políticas e ações setoriais, mas também diretamente na atuação de servidores públicos. Entidades representativas desses trabalhadores, como Asibama e Ascema, têm protagonizado protestos e denúncias públicas sobre perseguições a servidores, nomeações e trocas de gestores de UCs sem a devida qualificação técnica (10).

Este ano, o Fundo Amazônia não teve nenhum projeto aprovado. Em 2018, R$ 191 milhões foram revertidos a 11 iniciativas. O discurso e ações do atual governo resultaram na paralisação dos repasses por parte dos países doadores. Recentemente, foram alocados apenas R$ 2,2 bilhões para as ações ambientais federais no Plano Plurianual 2020-2023. O orçamento da pasta ambiental figura historicamente entre os mais baixos da Esplanada e, em 2019, foi de apenas R$ 2,8 bilhões.

Diante desses fatos, o governo brasileiro demonstra que não compreende a relevância e o potencial das unidades de conservação, terras indígenas e demais áreas protegidas. Durante esses 10 primeiros meses de gestão, não apresentou propostas e avanços significativos nessa agenda, apesar das inúmeras oportunidades e potencialidades existentes. Destaca-se ainda, a ausência de protagonismo e representação governamental durante o Terceiro Congresso de Áreas Protegidas da América Latina e Caribe, enquanto ministros e representantes de alto nível de diversos países estiveram presentes, apresentando seus compromissos de investimentos e boas práticas nessa agenda.

O desmonte ambiental em curso ameaça não apenas um patrimônio natural construído ao longo de décadas, mas o desenvolvimento econômico e social, e o bem-estar dos brasileiros e das futuras gerações em todo o planeta. O Brasil precisa garantir a efetividade das suas áreas protegidas e o fortalecimento das políticas públicas associadas.

Assinam essa carta:

A Coalizão Pró-Unidades de Conservação*
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Amigos da Terra – Amazônia Brasileira
Fundação SOS Mata Atlântica
Fundação Vitoria Amazônica
Instituto Curicaca
Instituto de Manejo e Certificação Florestal (Imaflora)
Instituto Mapinguari
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)
Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ)
Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)
Movimento Conservatio - Cultura de Áreas Protegidas
Rede Pró-UC
Reserva da Biosfera da Mata Atlântica
The Nature Conservancy (TNC-Brasil)
WWF-Brasil

Sobre a Coalizão Pró-UC

A Coalizão Pró Unidades de Conservação da Natureza (Pró-UC) é uma rede de instituições da sociedade civil, que tem como objetivo promover, junto à sociedade, o que consideramos as melhores e mais eficientes formas de proteger e conservar o patrimônio natural brasileiro, para essa e as futuras gerações. Para tanto, promove a articulação entre os setores, o debate junto à sociedade e desenvolve estratégias para o fortalecimento das Unidades de Conservação (UCs) em todo o território nacional.

Integram a Coalizão, Conservação Internacional (CI-Brasil), Fundação Grupo Boticário para a Conservação da Natureza, Fundação SOS Mata Atlântica, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (IMAFLORA), Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPE), Instituto Semeia, Rede Nacional Pró Unidades de Conservação, The Nature Conservancy (TNC), União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN-Brasil) e WWF-Brasil.

Referências

(1) YOUNG, Carlos Eduardo Frickmann; MEDEIROS, Rodrigo (org). Quanto vale o verde: a importância econômica das Unidades de Conservação brasileiras. Conservação Internacional. Rio de Janeiro, 2018.

(2) EPE, Empresa de Pesquisa Energética. Matriz energética e elétrica. Disponível em: http://epe.gov.br/pt/abcdenergia/matriz-energetica-e-eletrica. Consulta em 27/05/2019

(3) MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Painel Unidades de Conservação Brasileiras. In Cadastro Nacional de Unidades de Conservação. Consulta em 27/05/2019

(4) MACIEL, Marcela Albuquerque. Unidades de Conservação: breve histórico e relevância para a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Revista Âmbito Jurídico. http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9870

(5) MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Tabela consolidada das Unidades de Conservação. Disponível em http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80229/CNUC_FEV19%20-%20B_Cat.pdf

(6) WWF-Brasil. Unidades de Conservação sob Risco. Ofensiva contra áreas protegidas abrange uma área quase do tamanho de Portugal. Dossiê Brasil. 2017. Disponível em: https://d3nehc6yl9qzo4.cloudfront.net/downloads/dossiebrasil_v9_2.pdf

(7) Pack, et al. 2016. Protected area downgrading, downsizing, and degazettement (PADDD) in the Amazon. Biological Conservation 197: 32-39

(8) BORGES, André. Governo fará revisão geral das 334 áreas de proteção ambiental no País. O Estado de S. Paulo. 10 de maio de 2019. Disponível em: https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,governo-fara-revisao-geral-das-334-areas-de-protecao-ambiental-no-pais,70002822999

(9) Processo SEI ICMBio 02070.005443/20019-71 e revista Exame em 12 de junho de 2019. Disponível: https://exame.abril.com.br/brasil/ongs-criticam-decisao-de-reduzir-unidades-de-conservacao-ambiental/

(10) Portal G1 em 11 de outubro de 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2019/10/11/justica-federal-do-rs-suspende-nomeacao-de-indicada-por-deputado-para-chefiar-de-parque-nacional-da-lagoa-do-peixe.ghtml

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