quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Fronteira entre dados públicos e privados é desafio para transparência

Falta de acesso às informações do proprietário dificulta monitoramento do CAR pela sociedade

Maura Campanili

Um dos grandes desafios da abertura de dados por parte dos órgãos públicos brasileiros, como determina a Lei de Acesso à Informação (Lei no 12.527/2011), é a fronteira entre dados públicos e privados. A decisão sobre o que é disponibilizado varia conforme o órgão ou o tipo de informação, muitas vezes se tornando um limite à atuação de outras instâncias de governo, a estudos e ao controle por parte da sociedade civil. Um dos exemplos dessa questão, na área ambiental, é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), uma base de dados com 4,7 milhões de propriedades e 519 milhões de hectares, na qual não estão disponibilizadas informações sobre os proprietários (ou posseiros) do imóvel.
Esse foi um dos temas centrais abordados nos painéis organizados pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e parceiros no III Encontro Brasileiro de Governo Aberto, realizado nos dias 4 e 5 de dezembro, em São Paulo.
“A falta de acesso ao nome do proprietário do imóvel, no caso do CAR, torna a possibilidade de atuar da sociedade civil limitada”, defende Renato Morgado, coordenador de Políticas Públicas do Imaflora. Para Morgado, os limites de sigilo têm diferentes interpretações e seguem dinâmicas políticas. Um exemplo é o CAR no Estado do Pará, que usa a mesma base do federal, mas disponibiliza o nome e CPF ou CNPJ do proprietário. “No próprio governo federal, há diferenças de abordagem. Tanto a lista de propriedades embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) quanto a Lista de Trabalho Análogo à Escravidão trazem acesso integral aos dados.”
“O CAR deveria ser instrumento de transparência, que permitisse o livre acompanhamento junto com outros dados, como o inventário florestal e autorizações de manejo”, diz Roberta del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal. Segundo ela, a Constituição diz que a vida privada e a intimidade são invioláveis, mas o sigilo das demais informações deve ser excepcional e com prazo pré-estabelecido. “O exercício do direito se dá a partir do acesso à informação”.
Essa compreensão de limite desigual, para o coordenador do Imaflora, não é estritamente jurídica, mas política. “Para a sociedade civil, informações de propriedades que têm função socioambiental – como são os imóveis rurais – são de interesse público. Quando descumprem essa função estão retirando o direito do restante da população a um meio ambiente íntegro”, explica.
Outro dado que não está disponível, segundo Morgado, e que poderia fazer muita diferença, é a Guia de Trânsito Animal (GTA), que acompanha o transporte de animais no país. “Se pudéssemos cruzar esses dados com o CAR e o Prodes, teríamos melhores instrumentos de rastreabilidade da carne e o consumidor poderia saber se está consumindo produto vindo de área com desmatamento ilegal ou registro de trabalho análogo à escravidão”, diz.
No caso da madeira, esse problema começa a desaparecer, com a abertura, em setembro deste ano, dos dados do Documento de Origem Florestal (DOF) pelo Ibama. “Com o acesso a esta base de dados, é possível identificar padrões de ilegalidade da produção madeireira amazônica e criar ações que enfrentam o problema”, diz Morgado.

Prestação de contas
Segundo o auditor do Tribunal de Contas da União (TCU), Eduardo Nogueira, o sigilo fiscal faz com que a auditoria do TCU não possa ser efetivo na Receita Federal. “Sem informação, o TCU não consegue atuar com eficiência. A Constituição garante o sigilo aos dados pessoais, mas pessoa jurídica tem o mesmo direito? Um exemplo é que, no Portal da Transparência, é possível encontrar nome, endereço e todas as informações de um beneficiário do Bolsa Família. No entanto, o governo concede mais de R$ 300 bilhões em renúncias tributárias e não sabemos quais empresas se beneficiaram. O TCU deve se pronunciar sobre o sigilo fiscal e tributário no início do próximo ano”, disse.

Falta Cultura de abertura de dados
Camille Moutra, da Open Knowledge Brasil, abordou o último período eleitoral, quando a organização queria mostrar o quanto os candidatos haviam enriquecido, a partir de dados de empresas das quais eram sócios. Os dados referentes aos quadros societários das empresas são públicos no site da Receita Federal, no entanto, só era possível consultar uma ficha por vez. A organização, então, pediu a liberação dos dados completos com base da Lei de Acesso à Informação. “Informações que demandem gastos públicos podem ser cobradas, mas a Receita queria cobrar meio milhão de reais. Entramos com recurso na CGU, que nos deu ganho, pois a base de dados já estava pronta e não demandava despesas. Com isso, a Receita Federal disponibilizou os dados, que passaram para a transparência ativa”, conta.

Participação qualificada ainda é restrita para populações tradicionais
Nesta terceira edição, o evento abordou, pela primeira vez, a transparência relacionada às populações tradicionais. Para Nilce de Pontes Pereira dos Santos, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (Conaq), e Andrew Toshio Hayama, defensor público e conselheiro Estadual dos Povos Indígenas de São Paulo, a ausência de participação qualificada tem prejudicado esses povos na defesa de seus direitos, sobretudo à terra.
Entre as dificuldades enfrentadas por essas comunidades no acesso à informação, está a necessidade de dialogar com diversos órgãos (PGE, Fundação Palmares, secretarias estaduais e municipais de Meio Ambiente etc.) e a falta de preocupação do Estado em fazer a informação chegar até eles. “Para que haja realmente acessibilidade, é preciso um esforço do governo em saber quais são as organizações coletivas que representam esses povos e que possam participar das políticas públicas que os afetam. É preciso também superar obstáculos com o fluxo de informação, que exige acesso a internet e comunicação escrita”, diz Hayama.


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